Já não é a primeira vez que me vejo a pensar: há concertos que não deveriam ter encore, quer dizer, há ocasiões em que, tendo tudo já sido dito (e ainda por cima bem ou quase sempre bem), não deveríamos forçar os músicos a regressar ao palco para artificialmente voltarem a entusiasmar-se (quantas vezes forçando o artificial entusiasmo com que disfarçamos um certo sentimento de culpa), isto porque, regra geral, pouco de melhor ou de igualmente importante terão eles inspiração ou ânimo para nos voltar a ofertar.
Tal acontece, sobretudo, com música particularmente densa, pensada, complexa, cujo intenso e exaustivo processo de criação pouco a pouco se vai articulando, digamos assim, a partir do "nada", num processo "desapoiado", ou seja, do qual estão ausentes certas mnemónicas que costumam servir de álibi, repouso passageiro ou ponto de encontro (entre os próprios músicos ou entre estes e o público) nos momentos em que a criatividade é tocada pelo impasse, pela menor desenvoltura e rasgo, ou mesmo pelo esgotamento.
O problema é que, entre nós, concerto que não tenha encore não é concerto que se preze; e mais uma vez isso aconteceu com a actuação do quarteto Buffalo Collision, um dos dois excelentes concertos a que tive o prazer de assistir na segunda etapa do último Jazz em Agosto e que bem teria passado sem o forçado e frágil encore que acabou por ter.
Fotos: cortesia © Joaquim Mendes / Fundação Calouste Gulbenkian
Dois ou três aspectos singulares me parece essencial sublinhar na música que nos foi proposta pelos quatro elementos do quarteto, nenhum deles particularmente alinhado em correntes estanques ou "arregimentadas" num sentido estético único, como geralmente acontece -- basta conhecer-lhes os nomes, descobrir-lhes as ligações, saber-lhes os agentes, ler-lhes os críticos -- com os músicos frequentadores de certos festivais, sejam quais forem as etiquetas que se lhes colem.
E foi precisamente esta ausência de "sentido estético único" que constituiu uma primeira qualidade do concerto dos Buffalo Collision: estavam ali músicos simultaneamente "de dentro" e "de fora" do jazz, (em termos de cultura assimilada, interiorizada e praticada), abertos e disponiveis às influências e contaminações mais díspares e sabendo incorporá-las no jazz multifacetado que nos propunham.
Um segundo aspecto interessante e inesperado (para quem não lhes conhecia obra gravada nesta formação) foi a total ausência da composição previamente escrita, ainda por cima uma componente na qual Tim Berne é particularmente notável e inovador, sendo as três peças propostas inteiramente fruto da justaposição e interacção de vários contributos individuais, mais ou menos preponderantes, que iam livremente confluindo para o erguer de uma obra eminentemente colectiva.
Por último, chegados através desta segunda observação à conclusão de que se tratou de música por inteiro improvisada -- embora curiosamente tonal ou centrada sobre a atracção da(s) tonalidade(s) em movimento perpétuo -- foi possível também concluir, com imensa surpresa, que dela estiveram arredadas quaisquer tentações de circunscrevê-la aos processos declaradamente aleatórios e sonicamente desbragados da improvisação livre evocativa do antigo free jazz ou às tendências mais esotéricas e desenraizadas, ligadas às novas músicas de origem sobretudo europeia, pelo que só se pode saudar mais este caminho de síntese, entre outros que todos os dias nos surpreendem no fervilhar experimental do novo jazz que vai nascendo.
Já na véspera deste concerto me impressionara muito favoravelmente a banda de metais que o trompetista Dave Douglas trouxe consigo -- para uma actuação de certo modo "desalinhada" com o que é por hábito expectável ouvir-se neste mesmo Jazz em Agosto.
Dedicada a Brass Ecstasy (como o próprio nome da banda deixa supor) a essa importante personagem fundadora da AACM: Association for the Advancement of Creative Musicians que foi o trompetista Lester Bowie e, sobretudo, à fortíssima e nunca demais exaltada herança musical que nos deixou através (entre outros grupos) da sua Brass Fantasy, este novo quinteto de Dave Douglas pretende continuar, precisamente, a evocação da tradição das bandas de metais e sobretudo do espírito festivo e contagiante de uma música bem singular na cultura popular norte-americana.
Ao fazê-lo, porém, e procurando certamente seguir o caminho ensinado pelo próprio Bowie, Douglas é suficientemente aberto e multidisciplinar para tornar a sua Brass Ecstasy em muito mais do que uma simples "banda de repertório", invocando os blues, os rhythm' n' blues, as marchas de rua, o gospel ou outras formas de música popular como "formato instrumental e tímbrico" que conjuga com a subversão desse próprio formato ou, sobretudo, dos conteúdos musicais que esse "formato" poderia implicar, se entendidos de uma forma passadista, oportunista e com insinuantes preocupações em relação ao gosto do público.
Continuando a ser para mim hoje claro que a prolífica e originalíssima trajectória criativa da carreira de Dave Douglas, como pensador da música e como instrumentista, o terá tornado uma das personalidades mais importantes do jazz dos anos de 1990 em diante -- bastando para tal recordar obras de referência absoluta que nos vem deixando em disco (1) -- não é menos verdade que a polivalência e a multitude dos seus projectos tão diversos, revelando por um lado exigência e disponibilidade conceptual que parece não terem limites, se arrisca a arrastar consigo uma estudada postura de concensualidade ou a gerar efeitos de transversalidade em relação aos públicos do jazz, com a consequente multiplicação e pulverização da uma frenética actividade profissional.
Mas o talento de que dá mostras em quase tudo o que toca com a individualidade da sua visão criativa, comprova como não tem existido até agora esse risco (muito maior) da superficialidade e do facilitismo, uma fatalidade claramente afastada no decorrer da actuação desta Brass Ecstasy.
Tendo o concerto começado de forma algo insegura -- porque parecendo os músicos pouco concentrados, a começar pelo líder -- logo uma longa peça dedicada a Enrico Rava, construída em várias secções e amplamente devedora do sentido melódico do evocado, tocou a reunir, vindo recolocar as coisas nos eixos!
Seguir-se-iam, como pontos altos do concerto, o dramatismo de Prayer for Baghdad (com um belo solo de Vincent Chancey na trompa), o tom de festa e da improvisação colectiva de Bowie (com o trombone de Luis Bonilla e a bateria de Nasheet Waits a positivamente enlouquecerem) e, ainda, o humor sarcástico de Twilight of the Dogs (dedicada a George W. Bush) ou a batida funk de Mr. Pitiful (Ottis Reding).
Que melhor gozo se poderia esperar, nesta fase final do Jazz em Agosto?
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Stargazer (Arabesque, 1997)
Convergence (Soul Note, 1999)
Keystone (Greenleaf, 2005)
Moonshine (Koch, 2008)
Spirit Moves (Greenleaf, 2009)
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